Banguê José Lins do Regp

Grande livro de José Lins do Rego

O livro maravilhoso, Banguê, de Zé Lins do Rego, que terminei ontem fala bem de minha necessidade de ócio. Carlinhos sou eu, ali deitado na cama enquanto tenho meus rompantes de sonho e de grandeza.

Desde que eu possa permanecer bem ali, deitado.

Será que já inventaram um trabalho que eu possa fazer deitado? Sim, não só existe já inventaram o ofício como até mesmo os equipamentos, uma cadeira/maca/cama/estação de trabalho onde posso trabalhar no computador, deitado o dia inteiro, e ainda na posição adequada, que não vai ferrar com a minha coluna.

O Dr. Carlos também é assim, quer ficar deitado na rede o dia todo, enquanto as canas crescem, o engenho mói, os bois se criam por si mesmos nos pastos, sem que ele precise fazer um nada sequer, além de assistir da rede à sua prosperidade, ao seu dinheiro, à sua boa vida.

Ora, tão eu! Sempre disposto a ficar rico, a ser conhecido, competente, eficiente, bem remunerado, competente, desde que não precise fazer esforço físico algum, que possa passar o dia na cama vendo na Netflix todas as obras de arte arrebatadoras que um dia vou criar. Vou sim, vou conseguir, vou fazer, amanhã eu começo e pego firme. Assim que eu terminar esta série e tirar um cochilo.

Nossa, minha vida daria uma série também.

O garoto que perde o pai brutalmente assassinado, que cortava cana e cagava no mato, ambos, pai e filho, mas estamos falando do filho aqui, no caso eu mesmo.

Depois esse garoto vem para São Paulo, passa por poucas e boas como ajudante de mercadinho, balconista de padaria, operário de fábrica, costureiro, estilista, advogado, servidor público federal, que sai da periferia no extremo da zona leste da cidade para morar no Centro, num apartamento razoável, onde não há baratas na cara no meio da noite.

Sem engenho, mas com carro, viaja para a Europa, casou-se com um homem rico, os dois têm vários imóveis. Olha que história. Parece até a Regina Duarte em “Vale Tudo“. Quem disse que sonhos não se realizam?

Que história!

Eu juro que vou escrever todas elas, com riqueza de detalhes. Vou descer até o mais recôndito de minha alma, vou escarafuçar (o Google diz que a palavra é escarafunchar)… pois bem, vou escarafunchar todos os recantos mais íntimos, até mesmo os vergonhosos ou não tão honrosos de minha existência, como “cagar no mato”, por exemplo, ou, como diz Zé Lins, “fazer as obrigações no mato”, e vou escrever o livro, vou contar tudo em detalhes, vou fazer uma grande obra-prima.

Deixe-me só terminar este filme no Globoplay e descansar mais um pouco na cama ou no sofá.

E a Camila está deitada nas minhas pernas, não posso incomodar a bichinha. Você sabe como é pai de gato, não é? Maomé não cortou a própria capa para não incomodar sua gata, que dormia nela? Pois é, se até Maomé, quem sou eu para me levantar daqui agora e ir escrever?

Quando inventarem a cama/maca/mausoléu/caixão/estação de trabalho onde eu possa escrever deitado, aí sim.

Ah, já inventaram isso? Cara demais, né? Um dia eu a compro. Também não posso enfiar um trambolho daquele tamanho aqui neste apartamento. Vou precisar de um lugar maior. Um dia vou escrever minha grande obra, pode deixar.

Devorei o livro de Zé Lins, li sem parar até terminá-lo, às 2h da manhã, e ainda estava sem sono, porque agora não durmo mais sem zolpidem. Posso passar a noite em claro numa boa, como o próprio Dr. Carlos Mello, fazendo planos de grandeza e de riqueza de grande latifundiário, o aristocrata da cana-de-açúcar, membro da nobreza nordestina, que se alimenta em suas porcelanas chinesas, com talheres de prata, servido por seus criados de librè (como se escreve isso?). Meu amigo Google diz que é libré, com acento agudo mesmo, não grave: “fardamento provido de galões e botões distintivos usados pelos criados de casas nobres e senhoriais”.

Ah, meus criados de libré!

“O dinheiro eu tenho, só me falta-me o gramur” Lady Kate.

Talvez Banguê mostre um pouco disso também. É claro que Zé Lins fala muito da “herança que importa”, da Senhorita Bira (ícone!), do nome, da influência que coloca pessoas nos lugares onde elas querem estar, desde que tenham os contatos certos, com as pessoas que realmente importam.

Carlinhos, ou, mais tarde, Dr. Carlos é um vagabundo de marca, que quer apenas o melhor da vida, comer, trepar, ler livros e deitar na rede, enquanto espera prosperar como senhor de engenho. Tal e qual um nobre francês do Séc. XVIII, que lê livros e se entedia na alta sociedade, enquanto seus servos, administradores, feitores, mordomos, governantas, camareiras, cozinheiras, copeiras, jardineiros e toda essa caralhada de que se serve gente muito rica, faz tudo por ele. Tudo mesmo, incluindo dar-lhe banho e esvaziar seu penico de bosta, porque nobre mesmo não “caga no mato”, ainda que estejamos vivendo há 300 anos, sem saneamento básico, sem vasos sanitários. Isso é coisa de pobres e de índios.

Quem morre são os pobres, os que são preso são os pobres, quem sofre são os pobres, isto é, noventa e tantos por cento da população do mundo.

Os privilegiados de fato não precisam pisar no chão dos meros mortais, não se incomodam com as empregadas domésticas em aeroportos e aviões de carreira, porque não os frequentam, não os veem. Nem mesmo os domésticos dessas pessoas frequentam quaisquer lugares e quaisquer aviões. Vide uma reportagem desta semana no Uol, sobre as babás dos super ricos, que transportam seus corpos e bolsas de grife a bordo dos jatos particulares dos rebentos dos quais cuidam.

Enquanto eu, Astrogildo Cândido, o sonhador, durmo, escrevo quando quero e entrego uns mandados no Grajaú de vez em quando, onde dou de cara com a horda de milhões de miseráveis, pretos e pardos descendentes dos escravizados pelos Carlinhos de outrora, uma centena de ricos de verdade sobrevoa minha cabeça a bordo de helicópteros e jatos de milhões.

Vai sonhando, sonhador.

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