Ao olhar o WhatsApp me deparo com a seguinte mensagem de um amigo:

São duas fotos, que mostram, em primeiro plano, entre outras pessoas, um homem com cabelo “black power”.

Abaixo de uma delas está escrito: “Negrinho gostoso. Mas esse cabelo, fode”.

A frase está escrita com uma letra diferente, uma fonte que não é a usual no aplicativo, então penso que se trata apenas de um meme de mau gosto.

Repondo ao meu amigo:

“Jesus! Me diga que não foi vc que escreveu isso! É só um meme, né?”

É óbvio que se trata “apenas” de uma piada de mau gosto, porque meu amigo não teria coragem de expressar em palavras um pensamento desses.

Então ele me responde:

“Kkk É não”

Eu treplico:

“Oh, Cher!” junto com três emojis de pânico.

Daí ele me encaminha mais algumas fotos e eu envio de volta um emoji sem boca.

Sim, é verdade, estou sem palavras.

Ou, melhor dizendo, é claro que eu ainda tenho palavras, mas tenho medo de expressá-las, pois qualquer coisa que eu diga ou escreva nesse momento pode colocar em risco nossa amizade.

E não quero fazer isso, pois amo demais meu amigo.

Não quero correr o risco de dizer o que realmente penso a respeito dessa mensagem. Primeiro, porque não vou arrumar confusão sobre isso; segundo, porque não quero perder o amigo.

Estou sempre fugindo do conflito. Sempre que ele não é inevitável, lembra? Não gosto de arrumar confusão, muito menos confusões sobre as opiniões dos outros. Não quero ter que argumentar nem criar climão entre nós. Como já disse, amo meu amigo.

E isso me faz pensar numa coisa. Há poucos dias li, numa matéria justamente sobre o Dia da Consciência Negra, que para combater o racismo não basta não sermos racistas, temos que combatê-lo ativamente. Também li que não é necessário ser preto para combater o preconceito contra os negros.

Mas o que fazer nesse caso? Estou com preguiça, lembra? Não quero entrar em confronto com pessoa alguma. Só quero ficar aqui deitado curtindo (desperdiçando?) minhas férias.

“Mimdeixa!”, como diz meu marido.

Ah, bosta! A quem estou tentando enganar? O climão já está criado. Eu o criei quando mandei aquele emoji sem boca. E foi ele quem começou, eu gritaria para minha mãe, se fosse criança, quando mandou aquela frase sob a foto.

Não somos crianças e estamos em 2021. Não dá mais para encarar uma coisa dessas apenas como uma piada de mau gosto e sorrir amarelo, como quando usávamos em nossas conversas, tempos atrás, as classificações dos cavalos de raça para nos referirmos aos tons de peles de pessoas negras: pelagem 5, pelagem 6, pelagem 7…

Sim fiz isso. Shame, shame, shame!

Nós somos racistas?

É sério esse tipo de pergunta? Então alguém que se refere a um ser humano usando as classificações que se dão a animais em virtude da cor da pele da pessoa é o que?

Vou adiante.

Qual a diferença entre dizer que alguém é pelagem 7 e dizer que ele é um “macaco”? E por que chamar alguém de macaco é tão chocante, mas dizer que ele tem a pelagem seja de que número for não o é?

Ou será que na verdade eu não me choco nem mesmo com o uso da palavra macaco para se referir a uma pessoa negra?

Pergunto-o porque tento todos os dias combater o meu próprio racismo arraigado por anos e anos ouvindo de meus avós, de minha mãe, de meu pai e de inúmeras outras pessoas brancas (ou pior, não brancas) frases como “nêgo não presta”; “nunca vi um nêgo pra não ser amostrado”; “neguinha acanaiada”; “aquela timbu”; “aquele macaco que matou teu pai”; “parece o São Benedito torrado no óleo”; “um homem nêgo, se proceder, torna-se um homem, a mulher preta nunca passa de uma porca”… e inúmeras outras que não caberiam aqui nem que eu escrevesse uma centena de páginas.

Eu me policio todos os dias para, quando vejo dois adolescentes negros brincando e rindo na rua, como quaisquer outros moleques nessa fase da vida, combater o pensamento que me vem: “são amostrados mesmo, bem que mãe falou”.

Procuro arrancar de mim lampejos como “não acredito que esse pretinho tem um carro desses; deve ser o chofer” quando vejo um homem negro dirigindo um carrão.

Luto comigo mesmo para não pensar que aquelas moças africanas que moram no abrigo de mulheres aqui perto são bundudas ou têm “o dente de alho roxo”, outra das pérolas que ouvi de outro amigo.

Tento, na maioria das vezes sem sucesso, mas tento, não sexualizar um homem negro na rua com pensamentos como “imagina o tamanho do pau”.

E mesmo o cabelo, quando vejo na rua um “black power” ou “dreads” ou trancinhas, tento não me lembrar do que falava uma antiga amiga, cabeleireira especializada em cabelos black, sobre o quanto alguns eram sujos e fedidos, porque “a pessoa coloca tranças e acha que não precisa mais lavar o cabelo”.

Ah, minha deusa Cher, a senhora é testemunha de que eu tento seriamente.

Quando vejo a Taís Araújo na tevê tento não pensar que ela é linda apesar de ser preta, como minha mãe faz. Ou que aquele bebê “é lindo, tão alvinho!”, como minha mãe diz.

E, por falar em minha mãe, por que tive coragem de enfrentá-la várias vezes nesse assunto? Usei com ela frases como “É uma pessoa, mãe! Não se fala assim de alguém!”; “É humano da mesma forma que todo mundo. Ou a senhora pensa que o sangue dela é de que cor?”; “Pelo amor de Cher (no caso, diante dela, uso deus, rsrsrsrs), cale a boca! O pai dela é negro!”

Por que já enfrentei tantas vezes a minha mãe, mas não tive coragem de dizer ao meu amado amigo o desconforto que me causou aquela frase?

Eu sou racista? Estou sendo racista quando não combato ativamente o racismo? É bastante provável que sim.

Será que eu sou racista quando penso que o meu cabelo não liso, meu nariz largo demais para o meu gosto e meus glúteos avantajados são fruto de minha própria miscigenação?

No fundo eu gostaria de ter os cabelos lisos, os olhos azuis e a bunda achatada como meus antepassados holandeses, em vez das características que deixam bem claras minhas raízes congolesas?

Talvez sim.

Eu sei que, quando certas frases me causam desconforto, isso tem relação com o que o grande Caetano diz sobre “Narciso acha feio o que não é espelho”, mas com o sinal trocado. No meu caso o eu Narciso acha feio justamente o que vê no espelho.

Não posso negar que, se tenho que lutar contra todos os pensamentos que citei acima, isso significa que os tenho arraigados em mim. Assim como dezenas de outros humanos preconceitos, alguns dos quais posso, inclusive, ter derramado aqui.

Posso culpar meus pais, meus avós, meu círculo de amigos e conhecidos, se alguns deles, embora visivelmente miscigenados como eu, sentem-se brancos?

Não mais.

Como diz J. K. Rowling, “existe um limite a partir do qual não é mais possível culpar nossos pais pelos nossos fracassos”.

Eu digo que existe um tempo na vida até onde podemos culpar nosso ambiente pelo racismo que sentimos, ou, um tempo além do qual eu não posso mais culpar quem quer que seja pelo meu próprio racismo.

Por que eu não disse isso ao meu amigo? Porque odeio o conflito e o climão. Porque aprendi, com minha mãe, além das coisas menos nobres que citei, que “quem tem vergonha não faz vergonha aos outros”.

E porque não sou bastião da moralidade para ninguém. Se eu mesmo luto diariamente contra meu próprio racismo internalizado, como poderia me arvorar em julgador dos outros?

Como eu poderia apontar o racismo do meu amigo quando tenho dificuldades em enxergá-lo em mim mesmo?

E quando eu digo “dificuldade” não é que eu não saiba ou não enxergue o racismo que sinto, mas que eu não me sinto de forma alguma confortável nem feliz comigo mesmo em senti-lo.

Eu espero, minha deusa, que chegue o dia em que eu não precise mais lutar contra pensamentos, atitudes ou sentimentos racistas.

Até lá, sigo lutando.

Talvez eu devesse ter dito isso ao meu amigo!

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