Era o padre de Areia desde que eu me entendia por gente. Foi o padre que me batizou, que me deu a primeira comunhão e que me crismou, lá na casa de farinha do sítio, transformada em capela improvisada, que pertencia ao mesmo homem que foi meu padrinho de crisma.

Nem me lembro direito o que significava ser crismado. Ou talvez me lembre, sim. E sem o deus Google, o onisciente, onipresente, onipotente, o que tudo sabe e que, agora com a inteligência artificial, tudo vê. Mal a gente pesquisa armário no danado e já aparecem em seguida milhares de anúncios de lojas que vendem armários em qualquer site que a gente entre.

Mas esse não é o assunto aqui.

A crisma é a confirmação do batismo, quando o/a adolescente, já supostamente cônscio de suas necessidades espirituais, confirma, por meio de um novo sacramento, em que ele mesmo escolhe seu padrinho ou madrinha, que quer continuar a pertencer à religião católica.

Padre Ruy me crismou. Tenho várias histórias sobre ele. Felizmente nenhuma daquelas escabrosas que pululam na Igreja Católica, sobre relações pouco filiais entre padres e seus fiéis meninos, sacristãos, assistentes, seminaristas e outros. Ufa!

Embora eu tenha lembrado de Padre Ruy por ter assistido, agora há pouco, a um pedacinho de documentário sobre abuso sexual na Igreja Católica, no History 2 (“muito mais história”), enquanto me entupia de café com leite e do bolo de fubá com goiabada que fiz ontem, no meu pequeno banquete de todas as tardes, não consta dos anais da história da cidade de Areia, que houvesse qualquer acusação desse tipo envolvendo o padre.

Parece que ele era mesmo um homem santo, pelo menos no sentido sexual, embora um pouco dado a gostar demais de bens materiais. Quem pode culpá-lo por esse segundo pecado? Ele era humano. Todos gostamos do que é bom.

O que eu sei é que o padre fundou a escola onde eu estudei, o Carlota Barreira (nome da mãe dele), o Museu Regional de Areia, a biblioteca do Pio XII e o auditório, que funcionava no mesmo prédio, que todos chamávamos simplesmente de Pio XII, bem ao lado da igreja.

O museu fundado por Padre Ruy, que foi instalado inicialmente no Pio XII, onde também havia uma escola de datilografia (quando eu morava lá isso ainda existia), hoje funciona num casarão do lado oposto da igreja matriz, que ficou abandonado e em ruínas durante anos, mas que o padre usucapiu depois, provavelmente porque era de algum morto rico e não tão ilustre, que não deixara herdeiros.

Há vários casarões desses abandonados na cidade.

E sabe por que há várias histórias de minha infância que envolvem o Padre Ruy? Se você nasceu ali pelos anos 70/80 e cresceu vendo as novelas de Aguinaldo Silva, sabe do que estou falando: o padre sempre foi um personagem importante nas cidades pequenas. Talvez o seja até hoje, embora eu não me interesse mais por eles.

Padre Ruy era esse personagem interessante, como já disse. Era um homem finíssimo, culto e bastante inteligente, que gostava de arte e valorizava tanto a educação quanto a devoção a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Areia.

Ele me batizou lá no engenho de Dona Cecília, um dos grandes engenhos da minha meninice sem engenho, onde muitas vezes eu parava para pegar a puxa do melado já quase cozido, em ponto de bala, que me levou vários dentes.

Eu parava por lá nas longas caminhadas entre minha casa e a de outro Rui, o motorista preguiçoso que nos levava para a escola, mas que, durante toda a temporada de chuvas, não ia até onde morávamos, com a desculpa de que a caminhonete não trafegava pelas estradas ruins.

Tínhamos que ir até Mata Limpa, onde o bonito morava, seis quilômetros de caminhada na ida e mais seis na volta, cortando lama nas grotas de Dona Cecília, para de lá seguirmos os outros seis quilômetros até a cidade na carroceria da caminhonete lotada. Nunca ninguém caiu de cima do carro. Um verdadeiro milagre.

Mas não um milagre de Padre Ruy, que, até onde sei, ao contrário daquele outro padre famoso no nordeste inteiro, não era milagreiro.

No dia do meu batismo fomos ao engenho, pois lá havia uma capela onde o Padre Ruy celebrava missas duas vezes por ano, no Natal e no São João. Eu fui batizado no Mês de São João (minha mãe e muitas pessoas mais velhas com as quais convivi referiam-se assim ao mês de junho), o mesmo mês em que nasci, no ano em que completaria cinco anos.

Portanto eu tinha quatro anos quando fui batizado, porque faço aniversário dois dias depois do santo.

Eu me lembro de algumas coisas daquele dia. Nada relacionado com a cerimônia religiosa ou com o local. Sequer me lembro de ter alguma vez entrado na capela, a não ser nesse dia. Era (ainda é) muito pequenina, então o padre ficava num altar improvisado, montado na porta lateral da capela, e de lá rezava a missa para a multidão que se aglomerava, sob o sol escaldante, no terreiro da casa grande.

Dona Cecília, a senhora de engenho (morta há muitos anos), já era bem velha, por isso assistia à missa do alpendre. E era essa a razão por que o padre celebrava a missa da porta lateral da capela. É que esta porta dava para o casarão, ao norte, para o alpendre onde ficava Dona Cecília, bem sentadinha e confortável na sua devoção. A porta principal ficava do lado leste, de frente para a estradinha que levava à casa.

Uma das histórias envolvendo o Padre Ruy e Dona Cecília era a seguinte: certo dia um morador do engenho foi se confessar na cidade e lá disse ao padre que havia furtado uma das galinhas da velha. Ele não contava com a probabilidade de que o sigilo confessional fosse menos importante para o Padre Ruy do que a amizade com a senhora de engenho.

No dia seguinte, o relato do furto, confessado sob a presença de deus, na confiança do sigilo confessional, estava nos ouvidos de Dona Cecília. O pobre homem foi mandado embora da fazenda, dando-se por muito satisfeito de não sair de lá direto para a cadeia. Onde já se viu furtar a galinha da patroa! Ainda mais uma galinha que poderia ter sido devorada pelo padre depois da missa.

A outra história de que me lembro desse engenho específico é justamente a de meu batismo. Eu havia ido, ou sido levado, para o engenho, que ficava a cerca de três quilômetros de nossa casa, sem vestir a roupa do batismo, a imaculada roupa branca que minha mãe havia costurado para aquela ocasião.

Minha mãe tinha esse costume. Quando íamos sair ela arrumava todos os meninos da cintura para baixo, para adiantar a toalete do monte de crianças, e só vestia-nos as camisas na hora de sair de casa, para que não nos sujássemos de terra antes da festa (obviamente não era como hoje, que as mães levam uma segunda muda de roupa para trocar, caso a criança se suje, ou “quando” a criança se sujar, pois isso vai acontecer de qualquer jeito; nós mal tínhamos uma).

Nesse dia, como a roupa inteira era branca, e eu sempre fui muito, mas muito mesmo, desastrado, fui com uma roupa de outra cor e só na hora mesmo do batismo minha avó, que era minha madrinha, trocou-me a roupa.

Ocorre que minha avó arrancou meu short no meio da capela lotada. Assim, sem nenhum aviso, sem qualquer preparação. Simplesmente me baixou a short. Eu não usava cueca (mal tínhamos dinheiro para a roupa de cima, como já disse), então fiquei por uns segundos completamente nu no meio do mundo de gente, numa capela que, para meu tamanho, importância e idade, era imensa naquela época.

Que vergonha! Como minha avó/madrinha pôde pensar que não faria diferença trocar minhas roupas ali mesmo, no templo sagrado, diante de São João. Até o pobre santo deve ter ficado constrangido. Se bem que aquele menininho que ele tem no colo também está nu. Mas é só um bebê. Enfim…

De que mais me lembro desse dia? De que minha mãe tinha toda razão em postergar o momento de me pôr a roupa branca, pois, no almoço do batismo, que era galinha guisada com arroz branco escorrido (duas comidas que adoro até hoje e para sempre), nem bem me sentei à mesa, eu maculei a roupa branca de molho de galinha. Um escândalo!

“Menino danado de desastrado, parece que está com a mão no cu!” as palavras doces que ouvi de minha santa mãezinha nessa hora.

Pronto, não me lembro de mais nada desse dia. Depois houve outros almoços e outras missas, de Natal ou de São João. Houve até uma em que eu, já grandinho, ali pelos doze ou treze anos, li uma parte do evangelho, diante de um mundaréu de gente e, o que era mais especial, diante de Padre Ruy e de Dona Cecília, bem sentadinha na sua cadeira no alpendre.

Como me senti importante nesse dia. Foi um acontecimento, um menino tão novinho ter coragem de ler, e ler tão bem (dizia o povo!), diante de tanta gente. Esse menino é danado mesmo, ainda diriam alguns, anos depois. Uma vez uma pessoa me perguntou se eu era o garoto que havia lido em Dona Cecília. Sim, respondi.

Nessa época eu queria ser padre. Adorava aquele destaque todo de que o Padre Ruy gozava. Ele era um personagem importante, um dos principais da cidade, um homem que todos em minha volta admiravam. Quem não iria querer aquela relevância?

Agora imagine eu, que adorava ser o centro das atenções, se não iria gostar de estar no centro de tudo, o grande líder religioso, admirado até mesmo por meu avô, que não era de cheirar cu de padre.

Nas missas, nas festas de Nossa Senhora da Conceição, nas cerimônias especiais no Carlota, na visita do bispo a Areia, a primeira visita tão esperada, de alguém tão importante, da alta cúpula da Igreja, quem estava lá? Padre Ruy, claro.

É óbvio que eu queria toda aquela importância para mim.

Eu sempre quis ser o personagem principal, o admirado, não é à toa que também quis, ou pensei que quisesse, ser modelo, ator, escritor, estilista, juiz, qualquer profissão que me colocasse em alguma posição destacada.

Eu também queria ser admirado e amado pela minha mãe, pela minha vodrinha, por Dona Avany, a diretora da escola, amicíssima do padre. Todas essas mulheres eram católicas devotas e extremadas para quem, um filho padre, no caso de minha mãe, um afilhado padre, para minha vodrinha, um aluno do Carlota padre, seria uma honra.

A própria Dona Cecília tinha uma história nesse sentido, que minha avó contava com toda a dramaticidade de que só ela era capaz.

Dizia ela que um dos filhos de Dona Cecília havia ido para o seminário. Era uma honra extrema, claro, para qualquer mulher católica fervorosa daquela época, ter um filho no clero.

O mais velho não. Este devia ser macho, procriador, para levar adiante a linhagem aristocrática da família. Mas o segundo seria oferecido ao sacrif… digo, sacerdócio, a Nosso Senhor, para garantir a amizade da família com a Igreja e o tapete vermelho no céu para a chegada da mãe devota, que havia sacrificado seus direitos maternos em nome do sagrado dever de prover um padre à Santa Igreja.

Contudo, o moço descobriu-se não religioso, pelo menos não tão religioso a ponto de devotar sua vida à vocação sacerdotal, e largou o seminário depois de alguns anos. Ao chegar à casa, a mãe, Dona Cecília, muito desgostosa com a escolha do rapaz, estava acamada, presa de forte enxaqueca, e sequer saiu do quarto para receber o filho que retornava.

Ele foi até o quarto, chamou a mãe. Ela não lhe respondeu. Ele chamou-a mais uma vez. Ela ainda não lhe respondeu.

“Está dormindo, mamãe?”

Ela finalmente lhe disse:

“Antes estivesse dormindo o sono eterno.”

Pois vejam só. Como um filho se atrevia a cobrir de vergonha daquele modo a pobre mãe. Com que olhos ela encararia a partir dali Nossa Senhora da Conceição tão sofrida no altar? E o padre?

Nem sei se na época desses acontecimentos, muito anteriores ao dia daquela minha vergonhosa e involuntária nudez na capela, muito anteriores até ao meu nascimento, o padre da cidade já era o Monsenhor Ruy Barreira Vieira. Mas com certeza foi assim.

Por quê? Ora, porque foi minha avó que contou. Ela não mentia.

Não foi também ela que me levou a acordar e levantar no meio da noite de olhos fechados durante anos, até um tempão depois de eu me tornar adulto, por que me contou a história da esposa falecida de Seu Luiz Alves, que a visitou no dia da morte?

Rezava a lenda que a mulher morreu, supostamente na noite de núpcias, pois não aguentou o pau do marido, que era descomunal. E nessa mesma noite minha avó, mocinha virginal ainda, levantou-se para ir ao cagador (o banheiro improvisado no meio das bananeiras) e, ao sair pela porta da cozinha, deu de cara com uma moça toda vestida de branco, a qual, segundo minha vodrinha, era a esposa falecida de Seu Luiz.

Desse dia em diante minha avó passou a se levantar, sempre que era necessário acordar no meio da noite, de olhos fechados, para não correr o risco de ver outra vez qualquer fantasma.

E eu, que nunca fui nem um pouquinho ansioso nem influenciável, ouvi essa história da boca de minha avó ainda criança. Desse dia em diante também não me atrevi mais a me levantar no meio da noite de olhos abertos.

Só esclarecendo que, no interior do nordeste onde morávamos, não havia luz elétrica. A luz era a da lamparina, o banheiro era o cagador de folhas de coqueiro, a água era a que apanhávamos no riacho, a roupa era lavada nas cacimbas ou no rio a quilômetros de casa.

Esclareço isso para que você, menino(a) sem engenho que agora me lê, compreenda o que significava acordar e se levantar para ir ao banheiro (isto é, ao cagad… não vou repetir esta linda palavra), no meio de uma noite de lua nova, numa escuridão de meter dedo no olho. Na verdade tanto fazia olhos abertos ou fechados, mas os fechados com certeza eram à prova do retorno dos mortos.

Uma das coisas que eu mais admirava em Padre Ruy era aquela roupa imaculadamente branca, tão bem passada, tão impecável, que ele vestia na hora da missa.

Acho que eu, por ter uma mãe costureira de mão cheia, já admirava moda desde o berço e desde então sempre soube o que era uma roupa bem feita, bem costurada, bem passada.

Além disso, sempre “tive a mão no cu”, como dizia docemente, em sua finesse de dama francesa, minha santa mãe. Isso quer dizer que, quando eu não estava todo rasgado, estropiado, mordido dos cães e gatos que eu torturava, ou de qualquer outro modo arrebentado ou de ossos quebrados, estava imundo de terra, de ficar o dia inteiro enfiado no mato, descalço, trepado nas árvores, perdido nas matas, à procura de macaíbas e de bananas-raposa, ou nos canaviais.

Imagine então o que era para aquele menino sempre imundo ver aquele homem tão santo, tão imaculado, em suas roupas impecáveis, o rosto sempre limpo, bem barbeado, a careca lustrosa.

Havia também todo o teatro envolvido naquelas apresentações, digo, missas. O que é a missa senão um belo espetáculo teatral, muitas vezes chatíssimo, em que no centro do palco está o padre, com um ótimo figurino?

Ocorre que, se o padre for carismático, se os assistentes forem bons, se os cânticos forem bonitos, até que vai bem a peça. Porém se o padre não for realmente hábil, aquilo vira uma tortura sem fim.

Um dia ainda vou escrever sobre outras cerimônias religiosas a que compareci e que me foram torturantes.

Mas Padre Ruy era muito competente, carismático, inteligente. Eu não sei que cursos ele havia feito na faculdade. Muitos padres tinham mais de uma graduação, muitas vezes, além de Teologia, eles cursavam Direito, Filosofia, Psicologia. Eu realmente não conheço a formação de Padre Ruy. Só sei que ele dava conta do recado.

Na cerimônia de minha primeira comunhão Padre Ruy fez um espetáculo belíssimo, digno de bis. Depois que deu a comunhão para todos os meninos e meninas, entre eles dois de meus irmãos, meu tio de minha idade e duas das minhas milhares de primas, o padre fez uma pantomima interessantíssima, mandou todos acenderem e levantarem ao alto suas velas, cantou, rezou, emocionou a todos nós.

E depois houve, é claro, o retrato com o padre, diante do altar de Nossa Senhora da Conceição. A única foto que minha mãe podia pagar, a qual era tirada por Valdemiro, o fotógrafo oficial da cidade, que tinha uma voz muito aguda, o “s” sibilado das mulheres e trejeitos femininíssimos, mas era casado com uma mulher.

Todos reunidos em volta de Padre Ruy, minha mãe, os filhos todos. Eu grudei bem na batina de Padre Ruy, pois queria de algum modo ficar o mais próximo possível daquele homem imaculado e mostrar-me muito devoto na foto, afinal, a partir daquele dia eu era um novo católico, devidamente confessado e comungado.

A foto existe até hoje na casa de minha mãe. Eu estou bem encostado ao padre, até um pouco escondido atrás daquele vestidão dele. Tanto que pareço meio torto, como se estivesse caindo para o meu lado esquerdo, a vela e o santinho firmes nas mãos.

Falando em vela, minha irmã virou motivo de nossa mangunça durante anos, pois, por uma daquelas coincidências infelizes que estragavam as fotos antigas, de uma época em que não havia smartphones e fotos infinitas, uma ilusão de ótica dava a entender que ela estava cutucando o nariz com a vela. 

Todos nós sabíamos que aquilo era só mesmo uma ilusão de ótica. Mas, nas brigas infantis, quando queríamos vê-la chorar, a história do cutucão nas ventas com a vela da primeira comunhão vinha muito a calhar. Nem era a primeira comunhão dela. Não sei por que na foto ela tinha na mão uma vela, que enfiava no nariz.

Coitada de minha irmã. Imagine apenas uma menina numa casa com cinco meninos, um dos quais, adivinhem quem, era o cão. Nós a pegávamos para Cristo de vez em sempre, dia sim, outro também.

Uma das histórias que nosso irmão mais velho conta, da qual eu não me lembro, é que um dia minha mãe havia saído de casa, estava na casa de nossa avó, que ficava a cem metros da nossa, e eu havia ficado em casa com a menina pequena.

Nós vivíamos às turras. Brigávamos demais. Nessas brigas ela sempre saía chorando eu, apanhando. Eu odiava aquilo, porque ela sabia que, como a irmãzinha bem mais nova e indefesa, sempre seria protegida por minha mãe contra os malvados irmãos mais velhos. Ela então me provocava até eu dar-lhe umas casteladas, um cocorote ou coisa pior, depois ia chorando para minha mãe e eu apanhava.

Nesse dia o modus operandi foi o de sempre. Brigamos, ela me provocou e eu derramei sobre a cabeça dela o resto de café do bule repleto de borra (minha mãe não tinha o hábito de coar o café). Um montinho de borra de café ficou sobre o alto do cocuruto dela e o líquido escorreu pelo rosto e pela roupa da coitada.

Ela correu para a casa de minha avó, a encontrar minha mãe para defendê-la. Parecia Nossa Senhora das Dores, com as lágrimas escorrendo pelo rosto junto com os rios de café preto.

Eu não me lembro se apanhei ou não. Meu irmão, que me relembrou da história recentemente, da qual eu mesmo não tinha qualquer recordação, deve saber desses detalhes. Mas eu desconfio de que não apanhei. Primeiro porque eu já era bem grandinho, devia ter entre quinze e dezesseis anos; segundo porque certamente eu não esperei sentado a volta de minha mãe.

Voltando a Padre Ruy, para encerrar a história, eu me lembro da primeira vez que vi um homem de terno. Adivinha quem? Pois é. Eu nem sabia que um padre podia usar terno. Para mim padre era aquele homem de vestido branco imaculado, cheio de lindos detalhes dourados.

É claro que eu já havia visto o Padre Ruy à paisana. Eu sabia que ele não vestia o tempo todo aqueles paramentos. Os frades franciscanos, que usavam aquela roupa ordinária, rude, marrom e sem graça, toda amarfanhada, estavam sempre com aquele uniforme miserável. Mas o padre, que tinha um figurino tão caprichado, só o usava durante a missa. Vai entender!

Foi o acontecimento da cidade. A visita do bispo, que vinha não sei de onde, se de João Pessoa ou de Campina Grande ou de Guarabira. Pelo que me lembro ele vinha de baixo, ele subiria a serra de Alagoa Grande, portanto vinha de Guarabira ou de João Pessoa. Não sei se naquela época já havia a diocese de Guarabira.

Como nós estudávamos na escola de Padre Ruy, isto é, no Carlota, que havia sido fundado por ele, no qual, apesar de já incorporado ao estado da Paraíba como escola estadual, ainda rezávamos o pai-nosso antes das aulas, a diretoria, leia-se Dona Avany, carola que só ela, liberou-nos para receber o santo bispo.

A escola ficava num dos extremos da cidade, no caminho de quem ia para a Escola de Agronomia, e a igreja, como em todas as cidades pequenas deste país, no Centro. Aliás, a igreja era o Centro. Era também a praça principal e o coração da cidade.

Lá fomos nós, a escola inteira, dos pequeninos aos maiores, subindo em procissão para o centro da cidade, para recepcionar o bispo na rua Vigário Odilon, entre a igreja e a casa paroquial.

E lá estava Padre Ruy, muito alinhado, de terno. Um homem respeitável, elegante, alinhado e limpo como sempre, mas profano. Eu pensava que ele receberia o bispo em seus trajes de missa, que na minha opinião, eram muito mais bonitos e apropriados. Mas não, lá estava ele parecendo um advogado.

Foi uma decepção e ao mesmo tempo uma admiração para mim. Apesar de eu pensar em Padre Ruy sempre como o santo de batina da hora da missa, naquele dia eu vi o homem Ruy Vieira. Como já disse, eu não queria o homem, queria era o padre, mas assim o foi.

Padre Ruy estava em todas. Pense num homem que sabia se fazer imprescindível na cidade. Mandava e desmandava em tudo. Eu penso que ele mandava até no prefeito.

Era importante, querido, bem-visto, respeitado, amigo de fazendeiros e de fazendeiras, vizinho de gente rica da cidade. Quem não quereria aquilo para si?

Não era à toa que, com a minha personalidade, eu tenha querido ser padre.

Demorei muitos anos para compreender e admitir isso, mas eu só queria mesmo era ser o centro das atenções.

Quem me pode culpar?

Você pode saber mais sobre Padre Ruy aqui.

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