Nessa minha retomada das páginas matinais, nessa nova busca de mim mesmo, ou melhor seria dizer “reencontro de mim mesmo”, começo, como é de praxe, narrando sonhos. Tive dois esta noite. O primeiro com o meu Tio Bastião e seu alcoolismo me incomodando mais de vinte anos depois da morte dele. No segundo eu encontrava, ou melhor, o Pickles encontrava um tivaçu na estradinha que sobe de Mãe Chiquinha para a nossa casa na grota. Vamos a eles.
Eu ia visitar o tio e de lá resolvíamos ir de carro até a casa de outra pessoa, a Iva, irmã da Verônica (provavelmente, porque não me lembro direito de quem íamos ver e jamais chegamos lá). Tio Bastião resolvia dirigir meu carro, o que é bem estranho, pois ele não sabia dirigir. Mesmo assim eu o deixava guiar.
Um adendo, todos querem dirigir meus carros, seja Naldo, sejam meus irmãos, e nesse sonho até Tio Bastião, que nem dirigir sabia. Será que eu sou tão mau motorista assim? Ou eu, no meu desejo eterno de agradar a todos, deixo-os tão à vontade para se apossar do que é meu? Como no dia em que fomos visitar mãe no hospital em Areia. Na volta Walderez tomou o volante do meu carro sem sequer me dar uma satisfação. Apenas se acomodou lá, como se fosse natural que ele fosse o motorista de meu próprio veículo. Justo ele, que tempos depois, alcoolizado até o último fio do cabelo em plena tarde de terça-feira, arrebentou o próprio carro em cima de dois outros estacionados na rua, em frente a um colégio infantil. Por sorte não havia crianças saindo da escola naquele horário, ou o dano poderia ser irreversível. É provável que no sonho Tio Bastião represente meu irmão. Um beberrão pelo outro.
Pois meu tio, ao manobrar meu carro perto de um canteiro de obras, não viu que havia logo atrás dele um fosso, no qual o veículo quase despencou, ficando com uma das rodas traseiras quase inteira suspensa no ar sobre o nada. E pior que, ao tentar remediar a situação, o carro inteiro despencava lá embaixo, com todos nós, inclusive eu mesmo, dentro da máquina. Sabe-se lá por que moléstia eu, que me lembro bem de, do lado de fora, ter avistado a roda semissuspensa no barranco, fui entrar de volta no carro. Jamais faria isso numa situação real parecida com essa.
E agora, como sair de lá? Ficamos todos lá embaixo, como que congelados dentro do carro. Não haveria meio de o veículo escalar as bordas do buraco para nos tirar dali. Por fim os trabalhadores da obra indicavam uma saída. Havia um portão no fim da área construída, por onde entravam os caminhões de carga com os materiais da obra.
Saímos e continuamos a viagem por um tempo, até que o carro morreu e não houve meios de o Tio Bastião trazê-lo de volta à vida. Meu carro automático, o Tiggo; ele não sabia dirigir veículos automáticos. Só me restava tirar o carro do túmulo eu mesmo. Apesar disso, o tio não queria me deixar assumir a direção. Por isso lhe mostrei, com uma dor atroz no peito, que ele destruíra meu carro novo. Havia inúmeros amassados e arranhões profundos nas portas, nos paralamas, nos para-choques, na traseira. O carro estava todo lascado, coisa que eu também não vira até o momento em que lhe mostrei os danos. O tio estava bêbado, por isso havia amassado meu precioso SUV de shopping inteiro, meu carro novinho e tão lindo.
Após ser confrontado com o desastre, Tio Bastião afinal me deixava assumir o volante e se acomodava no banco do passageiro ao meu lado. Mas nem bem reiniciávamos a viagem, éramos parados numa blitz. Uma jovem policial queria porque queria apreender o carro. Eu argumentava de todas as formas tentando convencê-la de que não tinha culpa daquilo, que o autor da destruição que ela via havia sido meu tio, que não havíamos furado o sinal vermelho, como ela afirmava ter visto, que era muito importante chegarmos ao destino, por causa das crianças, que ansiavam pela viagem. Mas de modo algum ela cedia. E eu não poderia lhe dizer que meu tio estava bêbado feito uma cachorra, pois isso pioraria ainda mais as coisas.
Não sei como o sonho terminou. Aliás, sei sim. Ele foi interrompido durante essa blitz pelo grito do Bartolomeu atrás de comida. Diacho de gato escandaloso.
Depois de alimentar minhas lontras, voltei a dormir e sonhei novamente. Outro sonho esquisito, no qual se misturavam sem qualquer lógica nem pudor passado e presente.
Subíamos a estradinha que vai do riacho de Mãe Chiquinha até o local de nossa antiga casa, a que havia sido dos meus avós, hoje transformada em mandiocal, minha irmã, Naldo, minha sobrinha e meu sobrinho, alguns dos meus irmãos, Pickles, que jamais esteve lá, e eu, quando o cão endiabrado entra numa toca e acua algum bicho. Iluminando o buraco com a lanterna do celular eu avistava um animal preto com manchas brancas. Ere um tejuaçu. O cachorro estava lá no fundo do buraco latindo para o lagarto. Nem sabíamos como havia entrado ali, pelo túnel estreito que o teiú cavara.
Todo mundo quis conferir o bicho lá no fundo. Eu iluminei a toca várias vezes, para que todos se certificassem da existência do tivaçu lá no fundo. Decidimos pegar o animal. Tampamos várias outras saídas da toca, para que o tejuaçu não tivesse alternativas de escapatória e esperamos que o Pickles o arrancasse de lá para que o capturássemos.
A certa altura o cachorro se cansou e desistiu do lagarto. Simplesmente saiu da toca pronto a seguir com sua vida. Ah, mas que pena, não temos como pegar esse bicho lá no fundo. Eu, nem nenhum de nós, que não teria jamais coragem de enfiar a mão ali. Mas ele morde? É venenoso? Ele não tem dentes, só uma serrilha, mas a mordida deve doer. Eu que não pagaria para comprovar isso.
Eis que o bicho sai sozinho de seu esconderijo. Agora ele é que é o algoz, atrás do cão. Pickles, covarde como é, vai ser estraçalhado por esse tejo. Ele é enorme, deve medir mais de dois metros da cabeça até a ponta da cauda. Suspendo-o do chão pelo rabo. Não quero que meu adorado cachorro vire alimento de uma lagartixa super vitaminada qualquer. Seguro-o com força, mesmo morrendo de nojo daquilo.
Como eu posso ter comido isso um dia? Eu pensava ter visto no fundo da toca um animal preto com bolinhas brancas e coloridas, até bonito, como eu me lembrava que eram os tejuaçus da minha infância. Não aquele ser asqueroso, que se debatia na minha mão em tons terrosos e avermelhados de barro, sujo e repulsivo. Meu estômago revira em náuseas só de pensar que um dia comi aquilo.
Ele continua a se debater e se ergue para me atacar enquanto o mantenho suspenso pela cauda. Temos que o matar, penso eu e digo-o aos meus irmãos. Eu mesmo não tenho coragem. Alguém se prontifica e esmaga a cabeça dele com uma pedra. O bicho se contorce de dor nas minhas mãos mas não morre. Meu asco cresce, o café-da-manhã me vem todo à garganta.
Por que o matar, se ninguém aqui tem coragem de comer essa coisa? Matar por matar? Vamos levá-lo para casa, como fazíamos antigamente, quando nossa avó o tratava e cozinhava para nós. Talvez as crianças queiram experimentar a iguaria, como nós mesmos o fazíamos sem pestanejar quando éramos pequenos.
Decidido, levamos o bicho, que está meio morto, mas ainda é perigoso, ainda ataca. Quem o leva agora tem medo de segurá-lo. Tomo-o da mão da pessoa (Rogério talvez?) e seguro-o pela cabeça. Agora é a cabeça de uma cobra, toda ensanguentada, que se debate em minha mão e tenta escapar. Seguro-a com firmeza, mas ela é forte, está quase escapando de meus dedos. Eu me apavoro, quero soltá-la e deixá-la ir. E a pancada na cabeça? E o que lhe fizemos, o dano que já lhe causamos? O teiú não sobreviverá nessas condições. Machucamo-lo à toa, por pura crueldade, e vamos deixá-lo à própria sorte para morrer? Melhor dar-lhe alguma dignidade como um saboroso cozido.
Eu mesmo já sei que nem chego perto de colocar aquilo na minha boca. Talvez nenhum de nós adultos tenha essa coragem, por mais gostoso que venha a ficar. Mas podemos dá-lo a alguém que tenha fome e não se importe em comê-lo. Nessa hora me lembro das Cândidas alimentando o morador do sítio com um prato colossal de sua comida intragável. Ele come de lamber os beiços e pede mais.
Acordo outra vez justo no momento em que o bicho se debate em minhas mãos e estou prestes a soltá-lo ou a levar uma mordida. Embora eu o segure pela cabeça, com a certeza de que naquela posição ele não terá forças para me atacar, qualquer movimento em falso pode significar um ataque fatal.
Desta vez é Luisinho quem me salva com seu grito grave e faminto em meu ouvido. Tento enxotá-lo uma, duas, três vezes. Mas é um gato, caramba. Seu nome é Luisinho, mas poderia se chamar Persistência. Eu é que acabo resistindo e me levantando para alimentá-los todos outra vez. Camila já está a postos sobre o armário, Huguinho lança na minha cara seu adorável miado em dois tempos, Bartolomeu gira pela casa feito um pião.
Passam alguns minutos das sete horas. Ou será que faltam uns quinze para as sete? Não me lembro. Tomo meus remédios com um caminhão de água e preparo meu mingau de aveia, com açúcar, uma pitada de sal e muita canela. O mingauzinho do Caetano. Caetano já tomou seu mingau?
Outra pessoa que canta e toma mingau é a Céline Dion. Ontem vi o documentário dela no Amazon Prime A certa altura ela toma mingau de aveia. Tão envelhecida e frágil. Coitada, como sofre. Milhões de quilômetros da grande estrela mundial