Estava aqui pensando, enquanto observava o estrago que o cão fez na almofada especial que eu trouxe da Paraíba e assistindo ao Jornal da Globo News ao mesmo tempo, em que cor da pandemia eu me encontro.
Aqui em São Paulo estamos na fase vermelha, assim como em muitos lugares deste país. Eu, que sou servidor público federal, com meu cargo e meu salário assegurados no fim do mês, posso me dar ao luxo de seguir à risca essa fase.
Luxo?
Sim. Eu disse luxo mesmo. Um luxo que só têm aqueles que gozam do privilégio de terem trabalhos que podem ser realizados de modo remoto, o famoso rome ófice, que de tão falado nos últimos tempos, virou essa palavra que ouso aportuguesar aqui. Tome como liberdade poética.
A maioria dos ministros dos Tribunais Superiores, advogados, juízes, servidores internos dos tribunais e do ministério público, apenas para permanecer na área em que atuo, não comparecem fisicamente aos seus locais de trabalho há cerca de um ano.
Isso não quer dizer que não estejam trabalhando. Mas são pessoas que têm acesso a bons equipamentos de tecnologia da informação (TI, sigla que também ganhou popularidade nos turbulentos dias atuais) e a bons planos de internet, que podem trabalhar de Brasília, do Oiapoque ou do Chuí.
A depender do cargo, o trabalho remoto no serviço público já é permitido até de outros países. Conheço exemplos em que isso ocorre na prática.
Entre as profissões privadas, a mesma coisa. Muitos trabalhos podem ser realizados de modo não presencial. Analistas, executivos, artistas, arquitetos, gerentes e mais uma miríade de outras funções.
Até médicos, que exercem uma profissão eminentemente presencial, conseguiram trabalhar remotamente em parte do último ano.
Nesses dois serviços, o público e o privado, porém, mesmo quem pode trabalhar no home office nem sempre consegue desempenhar suas funções com todo o aproveitamento de antes. E não falo de competência, dedicação, empenho, nada disso. Estou falando mesmo de função, de atuação, de tarefas que nem sempre podem ser cumpridas a contento sem a presença do profissional.
Meu caso é o exemplo mais próximo que tenho disso. Imagine a vistoria de um imóvel, uma condução coercitiva, uma reintegração de empregado, uma penhora de imóvel no Jardim Colônia, extremo da Zona Sul de São Paulo, a 50km de minha casa.
Mesmo trabalhos que posso fazer de modo remoto nem sempre dependem só de mim. É sobre isso que falo quando digo que não dá para cumprir todas as funções com 100% de aproveitamento.
A citação inicial de um reclamado pessoa física, que mora num bairro com urbanização precária na região do Grajaú, em ruas nas quais as numerações chegam a ser tão irregulares, que algumas casas têm dois números muito diferentes ao mesmo tempo, não é tarefa fácil. Mesmo no trabalho presencial. Imagine online.
Mandar um e-mail para uma grande empresa de transporte coletivo que tem endereço certo e conhecido nessa região, que tem departamento jurídico e uma pessoa cujo cargo envolve, entre outras tarefas, receber as citações do oficial de justiça, é uma coisa.
Outra, bastante diferente, é conseguir contato virtual com um citando do qual muitas vezes sequer o endereço físico consigo encontrar, que dirá o eletrônico (e-mail). Muitas dessas pessoas nem e-mail têm. Acredite, você que me lê aí do Alto de Pinheiros, isso existe, e muito mesmo, em inúmeras regiões de São Paulo.
E é justamente aí que quero chegar.
Ocorre que, mesmo entre os que poderiam aderir ao rome (íntimo já!), não são todos os que têm esse privilégio.
Em outros casos, isso é um luxo impensável.
A maior parte das pessoas que moram a 20, 30, 40 km ou mais do local de trabalho não têm carro. Ou, quando possuem um veículo velho, que serve à família de vez em quando, não conseguem abastecer com a gasolina custando mais de R$ 5,00, nem podem pagar estacionamento no centro da cidade todos os dias.
Eu pago R$ 250,00 de estacionamento por mês. Acho barato para a região onde moro. Mas para muitas dessas pessoas isso representa ¼ do salário. Pense em ¼ do seu salário. É bem caro, não?
E para essas pessoas as únicas alternativas são ficar em casa, deixar de trabalhar como balconistas, faxineiras, zeladores, porteiros, caixas de supermercado e similares, e morrerem de fome, ou enfrentar diariamente ônibus, trens e metrôs lotados para os seus trabalhos, os quais, repito, só podem realizar de modo presencial.
Creia-me, pode ser que ainda cheguemos lá, mas até o momento, ainda não temos faxina online nem comidas que se cozinham sozinhas. As máquinas de pagamento, por mais modernas que sejam, ainda exigem a presença de uma pessoa para operá-las.
Até temos muitas atividades que hoje já poderiam ser realizadas sem problemas e totalmente sem a interação com outro humano, mas mesmo essas ainda precisam de uma pessoa.
Por exemplo, temos caixas eletrônicos nos bancos há décadas (lembro-me de uma propaganda do Itaú, que divulgava seu autoatendimento, uma grande novidade, numa novela dos anos 1980), mas em parte dos locais ainda é preciso um funcionário para ajudar as pessoas a operá-los.
Em alguns supermercados também já há autoatendimento. Mas aí também é imprescindível um funcionário, talvez mais para fiscalizar se o freguês não vai sair de fininho sem pagar as compras (o que envolve outra discussão, para outra oportunidade, sobre cultura, honestidade, desigualdade social), do que para oferecer um auxílio na operação em si.
Entendeu onde quero chegar?
Mesmo assim esclareço.
Não adianta colocar a cidade na fase laranja, vermelha, roxa, preta, encardida, furta-cor, o que for, se a pessoa tem que entrar todos os dias num ônibus que transporta duzentas pessoas onde cabem cinquenta.
Nos vagões de trens e metrôs que transportam as pessoas daqui do centro para as regiões mais remotas da cidade, entre elas o Grajaú, onde trabalho, se a pessoa der o azar de embarcar em má posição, terá que ir com a coluna torta até o desembarque.
Isso não é piada. Morei muitos anos de minha vida aqui em São Paulo na periferia e já passei por situação idêntica a essa. Embarquei no trem na Luz, levado pela enxurrada de pessoas que me arrastaram para dentro, e onde parei, torto como uma árvore do cerrado, fiquei, na mesmíssima posição. Quando cheguei ao meu destino, uma eternidade depois, minha coluna doía tanto que fiquei inútil por uma semana.
Obviamente, no dia seguinte, com dor ou não, tive que passar pela mesma situação. E no seguinte, e no próximo, e no outro…
O que estou dizendo é que não há alternativa. Com pandemia, com segunda onda, com fase de qualquer cor, com dor na coluna ou seja onde for, essas pessoas têm que enfrentar aglomerações no transporte público de segunda a sábado.
Daí vem o Estado e diz que essas pessoas são obrigadas a ficar em casa nos fins de semana e feriados.
Eu pergunto: Se você fosse obrigado pelas circunstâncias a enfrentar esse tipo de proximidade com um mar de gente quase todos os dias, acharia anormal enfrentá-la nos seus dias de folga? Mais do que isso, acharia justa essa imposição? Não lhe pareceria hipócrita?
E veja que não estou falando apenas desse novo lockdown que foi decretado em São Paulo, o qual deve ser seguido todos os dias da semana, e que essas pessoas não podem, e não têm como, cumprir.
Também não estou falando do uso ou não de máscaras, que é outra discussão, pois nem sei se adianta usar máscara enquanto se está grudado à força no trem num desconhecido que nem se sabe se tomou banho (muitas vezes não tomou).
Falo, isso sim, de um distanciamento social que é impossível manter. Falo desses toques de recolher, desses horários limitados em bares, dessas proibições parciais que vinham ocorrendo nos últimos meses, quando se pensou que o pior já havia passado.
É muito fácil criticar, por estar aglomerado no baile funk, no sábado ou no domingo à noite, o jovem morador da periferia que está obrigado a enfrentar nos demais dias da semana o trem em cujo vagão ele nem ao menos consegue se mexer.
É muito cômodo, do meu local de home office bem equipado com internet banda larga de primeira, fibra ótica e o raio que o parta, descer o cacete nos moradores de periferia que, nas folgas entre limpar minha casa e abrir o portão do prédio para mim, foram à igreja, a única válvula que ele têm para escapar da vida de cão (não vou colocar outra palavra aqui por respeito a você) que levam.
Não adianta dividir o tempo da pandemia em fases e dar-lhes cores chamativas, pois a vida dessas pessoas não é compatível com essas fases. Com fase vermelha ou não, sua faxineira sairá da casa dela no Capão Redondo e virá limpar seus banheiros a bordo de um ônibus abarrotado de gente.
Ou vai dizer que até hoje, um ano depois, você ainda dispensa a sua faxineira e lhe paga a diária? Eu mesmo confesso que até tive a pretensão (como me senti humano e nobre então!) de dispensá-la com remuneração nos primeiros meses da pandemia.
Mas logo descobri que, das várias pessoas cujas casas ela limpava, apenas mais uma havia feito a mesma coisa. Minha nobreza, confesso com toda a honestidade, sem qualquer hipocrisia, só durou até esse dia.
Mas depois de tudo isso você deve estar me perguntando:
“Ok, menino sem engenho, eu já entendi que os ‘sem engenho’ não podem cumprir a quarentena e, quando o podem, não veem sentido nisso, se vão ter que se aglomerar, querendo ou não, a semana inteira , mas qual a solução? Vamos ficar só no pessimismo?”
Não, eu respondo. Sou otimista por natureza.
A solução é uma só e bem simples. Vou até gritar: VACINA!
Ah, era só isso? Era.
Então onde estão as vacinas?
Na casa de tua mãe. Não ouviu o Presidente da República dizer? Desculpe se me mostro mal educado e grosseiro por colocar a mãe no meio da discussão. Não pretendia ferir corações sensíveis. Estou apenas replicando as palavras de Sua Excelência.
Nós temos até uma vacina via nasal, para o que têm medo de agulhas, a qual já foi testada na multidão de 30 pessoas (que não lotariam uma van) e que já está sendo vendida até a Israel, que sequer precisa dela, porque já vacinou sua população. Ou você não ouviu o Presidente afirmar isso?
Eu estava aqui pensando no porquê de vender a vacina a Israel especificamente. Com todo respeito ao historicamente sofrido e não tão numeroso povo israelense, não seria mais negócio vender essa milagrosa vacina na Europa ou nos Estados Unidos?
Ah, mas eu ia esquecendo que tanto a Europa quanto o Tio Sam já encomendaram milhões e milhões de vacinas antecipadas, na mesma época em que o governante brasileiro desdenhava e zombava da “vacina chinesa do Dória” e de qualquer outra que não envolvesse cloroquina e ivermectina.
E eu realmente não me atreveria a tomar aquela outra vacina da qual ele desdenhou, a tal vacina da Pfizer, contra a qual ele sabiamente alertou-nos: “Se você virar um jacaré, é problema seu”. Deus me livre, eu não quero virar jacaré.
Estou bem como ser humano, embora alguns de meus semelhantes ajam como o que há de pior entre eles, mais letais do que os mais letais entre os animais irracionais (não me refiro a ninguém especificamente, tire suas conclusões).
Acabo de ouvir na Globolixo (logo nela? você não sabe que é nossa inimiga?) que a curva de mortes em Israel se reduziu drasticamente depois da vacinação em massa. Nos Estados Unidos, que vacinam dois milhões de pessoas por dia, ela começa a arrefecer.
Enquanto isso, o Ministro da Saúde, o mago da logística que entregou no Amapá 76 mil doses de vacina que deveriam ser entregues no Amazonas, anuncia que a previsão de recebimento de doses de vacina nos próximos meses é significativamente menor do que ele havia anunciado antes.
Desculpe-me por colocar água na sua fervura, você que me lê aí.
Chato, não? Eu apontei a solução, mas depois disse que ela não está disponível (a não ser que você entenda que só parte das pessoas acima de 80 anos devam ser vacinadas), nem estará tão cedo, por uma série de equívocos (para usar uma palavra amena) dos nossos governantes.
Você deve estar pensando que isso não se faz e que eu deveria terminar este texto com alguma mensagem de otimismo, uma vez que me disse otimista, não é?
Sinto muito mesmo. Reafirmo, sou otimista. Conheço a solução e divulgo-a aqui.
Se quem deveria colocar essa solução em prática não tem competência para isso, não é problema meu.
É problema de todos nós.
Lidemos com isso!